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HISTÓRIA

Fernando Corrêa da Costa e a Construção do Mato Grosso Moderno

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Por João Carlos Vicente Ferreira

No sopro cálido da manhã cuiabana, em 29 de agosto de 1903, nascia um menino cujas pegadas viriam a se estender por veredas de barro, por corredores hospitalares, por gabinetes públicos — e, sobretudo, por uma terra imensa ainda em gestação: o antigo estado de Mato Grosso. Esse menino, chamado Fernando Corrêa da Costa, trazia no cordão umbilical não apenas a herança genética de uma família tradicional, ele era neto de Pedro Celestino Corrêa da Costa, que governara aquele estado, mas também a vocação de servir, de curar, de erguer pontes, literais e simbólicas, em um território que se encontrava, naquele momento, na encruzilhada entre a rusticidade colonial e as ambições modernas de um Brasil em transformação.

Primeiros anos e formação

Nas ladeiras de pedra da Cuiabá antiga, em meio ao calor denso, ao bulício dos tropeiros e ao burburinho de uma cidade ainda pequena em termos urbanos, Fernando passou a infância observando a vida simples, e por vezes dura, de uma sociedade de fronteira. Filho de Pedro Celestino e de Corina Novis Corrêa da Costa, ele cresceu sob o signo de uma genealogia que já tinha conquistado postos de mando, mas que também exigia responsabilidade: “o sobrenome faz alarde”, diriam alguns, “mas o que importa é o que se faz com ele”.

Decidido a entrar no mundo da medicina — um mundo caro ao sacrifício, ao cuidado, ao corpo humano, ele rumou ao Rio de Janeiro e formou-se em 1926 na Faculdade de Medicina da Praia Vermelha. Após a formatura, fez estágio, adquiriu práticas clínicas, e em 1927 transferiu-se para Campo Grande, então parte de Mato Grosso, instalando-se como médico, circulando por regiões pouco assistidas, atendendo, de Ford “bigode” nas ruas, pacientes que vinham montados em burros, carregando febres e esperanças. Nesse cenário rústico, em que o atendimento médico significava também caminhar por estradas de terra, encarar doenças tropicais severas, conviver com isolamento e escassez de recursos, Fernando desenvolveu o que muitos definiram como “razão de médico” e “alma de gestor”.

No consultório, ele exercia mais do que a medicina: exercia o escutar. Seu consultório funcionava — contam as crônicas — não apenas dentro da farmácia central da cidade, mas muitas vezes na calçada, onde ele atendia quem chegava sem distinção. Esse hábito de ouvir antes de agir, de examinar antes de decidir, marcaria posteriormente sua postura pública como homem de governo.

A transição para a política

A fama de médico humano, incansável, reconhecido, abriu-lhe as portas da política. Em 1946, com o restabelecimento da democracia pós-Estado Novo, aderiu ao partido União Democrática Nacional (UDN) a convite de advogados locais e candidatou-se à prefeitura de Campo Grande, sendo eleito em 1947. A gestão municipal, embora breve, foi o laboratório de uma modalidade de fazer política que unia os gestos mais simples (visitas a enfermos, ordens de abertura de escolas) e os desafios maiores (infraestrutura urbana, saneamento, modernização), numa cidade que era ainda pivô de expansão agrícola, de acesso ao interior, de deslocamentos lentos e de esperas contínuas.

A experiência municipal mostrou-lhe que governar não era mero título, mas uma arte de composições: escutar, diagnosticar, prescrever. E assim, ele daria mais um passo: em 1950 foi eleito governador de Mato Grosso, assumindo em 1951, sob bandeira da UDN. O estado que ele encontrou era vasto, pouco conectado, marcado por desafios logísticos, sanitários, culturais: as estradas ainda eram promessas, os rios pareciam mais barreiras do que vias de progresso, a população dispersa exigia políticas que fossem mais do que discursos. Era preciso agir.

Primeiro mandato e os desafios de governar um mundo largo

Ao assumir o governo, Fernando Corrêa da Costa teve diante de si uma geografia que impressionava — municípios longínquos, bandeiras coloniais, ausência de energia elétrica em muitos rincões, e uma população majoritariamente rural. Nesse mundo largo, o gesto governamental precisava ter corpo. E ele agiu: investiu em transporte, em energia elétrica, em criação de instituições públicas, como bancos, companhias agrícolas, fundos de ensino. Esses gestos eram, para ele, como ministrar um soro numa veia quase colapsada de uma região esquecida: decidir não apenas por imposição, mas por necessidade.

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Durante esse período, a disciplina da escuta se fazia presente: visitas a comunidades, acompanhamento de obras, presença pessoal em hospitais. Há registros de que, mesmo como governador, ele continuava a visitar doentes, a se importar com o pequeno, a manter um olho de médico no Estado. Esse estilo, pouco ostentado, mas firme, fez com que muitos o vissem não apenas como um político, mas como um servidor.

A volta ao Senado e o segundo mandato governamental

Ao fim do primeiro mandato, a experiência no Executivo serviu-lhe de alicerce para a atuação no Legislativo. Em 1959 assumiu o cargo de senador da República, representando Mato Grosso. No Senado, atuou em comissões como Saúde, Finanças, Forças Armadas, Reforma Agrária, o que revela que sua política não se restringia ao local, mas dialogava com a conjuntura nacional.

Em 1961 retornou ao cargo de governador de Mato Grosso para seu segundo mandato (1961-1966), etapa na qual muitos dos projetos iniciados ganharam corpo, estrutura, e institucionalidade. Nesse momento, o cenário brasileiro já era outro: pressões políticas, a Era Militar se aproximava, e a região se preparava para as transformações econômicas da agropecuária, da hidrovia, da exportação. Ele conduziu o estado mediante a convicção de que o governo era instrumento de integração, de combate ao isolamento, de criação de condições mínimas para que o cidadão tivesse acesso a escola, luz elétrica, transporte.

Instituições como a Fundação do Ensino Primário de Mato Grosso (FUNDEPRIM), o Instituto de Previdência do Estado do Mato Grosso (IPEMAT), a Companhia Agrícola de Mato Grosso (CAMAT), a Companhia de Armazéns e Silos de Mato Grosso (CASEMAT), o banco Banco do Estado de Mato Grosso (BEMAT) surgiram ou foram impulsionadas nessa fase. Esses órgãos não eram “obra de marketing”, mas alicerces de um Estado que se adaptava, que buscava transcender o seu próprio tamanho e dispersão.

Características do estilo político

Se perguntarmos o que fazia a singularidade de Fernando Corrêa da Costa, a resposta reside tanto no passado médico quanto no temperamento, modesto, paciente, resoluto. Ele era descrito como “enérgico, elegante e humanista”. O humanista porque lembrava a raiz do “ser médico”: abraçar o outro, aliviar o sofrimento, promover saúde, e levou isso para o plano público. O elegante porque compreendia que governar exigia presença, decoro, integridade, valores que, segundo seus pares, lhe definiam. O enérgico porque jamais aguardou que outros tomassem a iniciativa: ele andava, decidia, supervisionava.

Outra marca era seu silêncio predileto: não fazia alarde. E quando falava, era com propósito. Algum cronista disse que o silêncio de Fernando “pesava como pedra, construía como argamassa”. Essa metáfora serve bem para descrever um homem que preferia executar à mera proclamação. No consultório, ele ouvia antes de receitar; no gabinete, ele escutava antes de ordenar. Era, de certo modo, o modelo do político-médico: menos espetáculo, mais substância.

O contexto de Mato Grosso e os desafios regionais

Para compreender o valor da atuação de Fernando Corrêa da Costa, é preciso voltar ao estado de Mato Grosso daquela época. Um território praticamente continental, com ondulações de cerrado, rios selvagens, populações espalhadas. Em meados do século XX, as estradas pavimentadas eram raras; a comunicação com Brasília ou com grandes centros se fazia por horas, às vezes dias; doenças tropicais, carência de infraestrutura, acesso restrito à educação e à saúde eram realidades vivas. Nesse panorama, governar significava pintar estradas, firmar pontes, levar luz, organizar administrações locais, criar instituições. E foi exatamente isso o que ele se propôs a fazer.

Transportes, energia elétrica, agricultura, crédito rural, eram prioridades. Porque sem energia, sem estrada, sem transporte, a terra produtiva permanecia na poeira. E ele o entendeu: durante sua gestão, fez da integração territorial uma missão política, tão essencial quanto da própria retórica. A esse caráter pioneiro, meios de comunicação que fizeram retrospectivas de sua vida afirmaram que “foi responsável pela criação das principais estruturas que impulsionaram o desenvolvimento econômico de Mato Grosso na década de 60”.

Legado institucional e humano

Lotando-se o mandato, Fernando Corrêa da Costa deixou legados que persistem. Não são monumentos grandiosos, nem estátuas vastas; são pontes, escolas, hospitais, um banco, um sistema de crédito, uma estrutura de previdência. Esses legados intangíveis a confiança, o estilo, a modéstia — acompanham-no. Por exemplo: a avenida que leva seu nome em Cuiabá, a lembrança nas escolas, os registros em jornais que apontam seu trabalho silencioso. A materialização do legado está menos no mármore do que na argamassa que une as comunidades, no acesso que um menino no interior passou a ter, na estrada que se tornou caminho e não obstáculo.

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E mais: após encerrar sua carreira política, seu segundo mandato como senador vai até 1975. Ele continuou a servir, como médico, como cidadão. Em Campo Grande, já então capital de fato de grande parte da região — era comum vê-lo atender amigos e desconhecidos, sem alarde, como se o calendário da vida se dividisse entre “antes do jaleco” e “depois do paletó”, sem ruptura abrupta. Sua morte em 2 de dezembro de 1987 em Campo Grande se deu com a mesma sobriedade de sua vida: um homem que não precisou de alarde para existir, e que, por isso, existe ainda.

Reflexões sobre a memória e o esquecimento

Curiosamente, apesar de sua relevância, Fernando Corrêa da Costa não ocupa o pedestal de herói nacional, nem está amplamente presente no cânone da história contemporânea brasileira. Talvez porque recusasse o culto ao eu; talvez porque sua atuação nunca teve como premissa o espetáculo. E aqui reside uma lição: as grandes transformações não exigem necessariamente holofotes, mas consistência. Parte da memória coletiva encontra-o quase submerso — nas entrelinhas da história regional, nas atas dos antigos jornais, numa rua cujo nome muitos ignoram.

E esta invisibilidade voluntária, se assim pode ser chamada, reforça o encanto. Porque há homens públicos dos quais o tempo tende a apagar a face, mas não o efeito. E no caso dele, esse efeito ainda se faz sentir nas veias de Mato Grosso: nas escolas, nas estradas, nas redes de água e luz, na forma de fazer política que privilegia o escutar, o atender e o construir.

A linhagem, a continuidade e o simbolismo

A figura de Fernando Corrêa da Costa liga o passado de uma elite regional, representada pelo avô Pedro Celestino, às exigências de um Brasil que emergia para a modernização. Há, na sua trajetória, o símbolo das duas vocações: a medicina e a administração pública; a cura e o Estado. Ele provou que governar era também, metaforicamente,ministrar um remédio ao corpo coletivo de uma população. Ele provou que não basta atender sintomas, mas tratar causas: a infraestrutura, a educação, a previdência, o transporte.

E, ao encerrar sua trajetória, ele não se impôs como monumento; ele deixou um rastro. E esse rastro é talvez mais duradouro: as gerações que não o conheceram pessoalmente ainda respiram o oxigênio das transformações que ele ajudou a desencadear. Ele talvez não tenha esperado estátua ou busto. Disse-se que bastava que, num encontro casual, alguém dissesse: “Ah, aquele era um homem sério”. E, de fato, para ele, isso já bastava.

Conclusão: a permanência na errância

E assim, no fim de sua vida, como a chuva que cai e permanece invisível, mas molha tudo por dias, Fernando Corrêa da Costa partiu em 1987, em Campo Grande, deixando um legado discreto mas firme, uma história que não se conta em manchetes, mas se revela em nomes de ruas, em escolas, nos subterrâneos da memória coletiva. Sua figura ressuscita como o médico que virou governador, o homem que preferiu agir a discursar, o estadista que entendeu que o corpo do Estado também precisava ser curado.

Se hoje caminhamos por estradas asfaltadas, entramos em escolas iluminadas, temos acesso à previdência e ao crédito rural, parte disso ecoa nos atos daquele homem que trocou o bisturi pela caneta pública, mas nunca esqueceu que política também era cuidar de homens e mulheres. E se o tempo insiste em nos fazer esquecer, cabe a nós,historiadores, editores, autores, leitores — lembrar que mesmo nas linhas finas da história regional cabe a grandeza de um homem que soube conjugar remédio e governo.

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HISTÓRIA

Filinto Müller: O Senador que Pensava Mato Grosso por Inteiro

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Por João Carlos Vicente Ferreira

Há figuras públicas que ficam presas a um retrato único. Em torno delas, a história congela um instante, quase sempre o mais controverso, e apaga todo o resto. Com Filinto Müller (1900–1973) aconteceu isso. O Chefe de Polícia do período varguista acabou eclipsando o senador de Mato Grosso que atravessou décadas, costurou apoios, abriu portas para conterrâneos e ajudou a viabilizar projetos estruturantes no então Estado Uno, especialmente na porção sul que, anos depois, se tornaria Mato Grosso do Sul. Reconhecer esse lado humano e propositivo não significa empalidecer as sombras do passado; significa, antes de tudo, ampliar o enquadramento para restituir complexidade a um personagem que marcou a política brasileira.

De Campo Grande e Cuiabá à Brasília, a construção de um articulador

Nascido em Cuiabá em 11 de julho de 1900, Filinto vem do ambiente militar para a política nacional. Após 1945, elege-se senador por Mato Grosso em 1947, retorna ao Senado em 1955, e, numa trajetória de alta voltagem política, atua como líder de governo e, após 1964, torna-se uma das principais vozes do partido governista, a ARENA, chegando a sua presidência. Em 1973, assumiu a Presidência do Senado e do Congresso Nacional, cargo no qual morreria em 11 de julho daquele ano, vítima do acidente do Voo Varig 820, em Paris. Esses marcos, hoje, constam nas biografias oficiais do Senado e em sínteses de referência.

Mais que cargos, porém, interessa aqui o estilo, Filinto tinha talento para articular,transitava entre gabinetes, operava com prazos e orçamentos, telefonava, pedia, cobrava, encaminhava, especialmente quando o assunto era Mato Grosso. É assim que ele se torna, para muitos conterrâneos, o “atalho” entre o interior e as mesas decisórias de Brasília, não como “padrinho” no sentido vulgar, mas como ponte política.

Educação como projeto nacional: a semente da UNB e da UFMS

Filinto sempre teve como um de seus propósitos de vida e de política a educação. Focou muito nisso, são muitos os fatos que evidenciam essa obsessão por esse tema.  Em 1961, com o projeto da UnB – Universidade de Brasília, enfrentando resistência no Senado, Darcy foi aconselhado a procurar Filinto Müller (líder do governo). Embora adversários, Filinto o recebeu para um chá e garantiu: “Não se inquiete, professor. O problema agora é meu”; pouco depois conduziu o debate e a matéria foi aprovada, a UnB seria autorizada pela Lei nº 3.998, de 15 de dezembro de 1961. O sul do antigo Mato Grosso, notadamente Campo Grande, conheceu nos anos 1960/70 um salto institucional no ensino superior. Primeiro, com a expansão de institutos isoladosbaseados em municípios interioranos; depois, com a Lei estadual nº 2.947, de 16/09/1969, que criou a Universidade Estadual de Mato Grosso (UEMT). Mais adiante, já com o estado dividido, veio a federalização pela Lei nº 6.674, de julho de 1979, instituindo a Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). É esse encadeamento, institutos → UEMT (1969) → federalização (1979), que explica a universidade que conhecemos hoje.

Qual foi o papel de Filinto nesse processo? Não há um “decreto Filinto” criando a UFMS, a federalização é posterior à sua morte, mas é impossível separar a engenharia política que permitiu ampliar a rede de ensino superior no sul do Estado da articulação de bancada e do partido em Brasília, áreas nas quais Filinto tinha peso real, pois, erasenador influente e presidente da ARENA (1969–72; 1973), com trânsito pleno nos ministérios. Nos depoimentos de época e na memória regional, ele aparece como interlocutor para aprovar recursos, destravar processos e fortalecer a pauta educacional do governo estadual, então sob Pedro Pedrossian.

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Essa visão de interiorização, laboratórios, bibliotecas, escolas de formação técnica,tinha um claro horizonte: rachar o isolamento do interior. A universidade, nesse sentido, não era apenas um conjunto de cursos; era território de futuro, um pacto de formação que permitiria ao jovem de Dourados, Corumbá, Ponta Porã, Coxim e Três Lagoas ficar e prosperar. É nesse fio de ação pública que Filinto é lembrado por muitos como parceiro e pressão em favor do sul do Estado.

1966: realpolitik, eleições e o “peso federal” no Estado Uno

Em 1966, o desenho eleitoral brasileiro vivia sob o AI-3 e o recém-instalado bipartidarismo; a ARENA arregimentava as bases do regime, e a política estadual se travava em torno de capitais regionais. Em Mato Grosso, o nome de Pedro Pedrossian consolida-se como expressão administrativa e palatável ao poder central. A literatura sobre as eleições estaduais de 1966, registra a força da ARENA no estado e cita o papel de Filinto Müller nesse contexto, liderança que pesava na montagem das chapas e na interlocução com Brasília, sem a qual nenhum projeto estadual respirava com folga.

A fé pública de que “Filinto referendou Pedrossian” nasce desse ambiente de coalizão,num Brasil onde recursos e autorizações corriam por canais estreitos, ter um senador com comando sobre o partido governista significava, na prática, abrir portas. O resultado concreto, para o sul do Estado, foi obra, serviço e formação.

Energia, serviços e municipalismo: o caso da Usina de Dourados

Se a universidade é símbolo do capital humano, a energia é a espinha dorsal da vida urbana. Dourados guarda um emblema que ajuda a enxergar a trama do período, a Usina Termoelétrica “Senador Filinto Müller”, iniciada na década de 1940, e inaugurada em 1949. Muito antes da chegada da energia interligada, aquela usina iluminou a cidade, marcou a paisagem e virou tema de pesquisas e reportagens sobre patrimônio cultural. O nome do senador na usina não é apenas homenagem; é sinal do vínculo político que associou sua figura a infraestrutura local e a agendas municipalistas.

É claro que filmes de época e fotografias mostram o quanto o Estado dependia de arranjos, prefeitura, governo estadual, apoio federal, para erguer e manter serviços. A memória douradense devolve a Filinto a imagem do senador que “falava pela cidade”, na capital federal. E, no Rio de Janeiro ou em Brasília, isso valia emendas, linhas de crédito, autorizações. A política miúda, tantas vezes invisível, é onde o propositivo se materializa.

Portas abertas para gente jovem: cartas, bolsas, passagens

Há um traço recorrente nas lembranças de famílias de Campo Grande, Dourados, Coxim, Três e Corumbá, dentre tantas outras, a de que os jovens que viajavam para o Rio de Janeiro ou São Paulo recebiam cartas de apresentação, recomendações, algum apoio logístico. Nem sempre isso aparece em atos oficiais, mas povoa a hemeroteca e os depoimentos orais. Esse é o Filinto das pessoas, o senador que escutava na portaria, que encaminhava. É o tipo de gesto miúdo que, somado, altera biografias. Para contar essa dimensão, o caminho é ouvir ex-estudantes e famílias, a memória ainda vive em cadernos, cartas, recortes. Muitas dessas pessoas ainda estão aí, vivas, quando não seus descendentes.

Ética, estilo e afetos: o Hotel Gaspar e a liturgia das visitas

Em Campo Grande, o Hotel Gaspar, hoje desativado, ficou colado à memória urbana, símbolo de uma era em que políticos, comerciantes, artistas passavam e deixavam rastro. Dissertações e inventários patrimoniais registram o papel desse hotel na identidade da cidade. Entre os relatos locais, é frequente a lembrança de que Filinto se hospedava ali quando em visitas. Não é o tipo de informação que se prova com um decreto, mas ela compõe a topografia afetiva do personagem, chegar, conversar, passar bilhetes, atender. Na política, a liturgia do encontro vale tanto quanto os discursos.

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As sombras e os equilíbrios, o chefe de polícia e o Supremo

Ninguém discute que Filinto, como Chefe de Polícia do então Distrito Federal entre 1933 e 1942, integrou o aparato repressivo do Estado Novo. O que se discute, e muito, é a distribuição de responsabilidades em episódios como o de Olga Benário. Aqui a documentação jurídica importa: o Habeas Corpus nº 26.155 foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 1936; a Corte negou o pedido, decisão que permitiu a expulsão de Olga do Brasil. Isso não absolve o papel da polícia política no inquérito e na custódia, mas repõe o lugar jurídico de cada instância no processo: a decisão última não foi de um chefe de polícia; foi do STF.

Reconhecer esse desenho não é revisionismo; é método histórico. O próprio debate público, em livros e dossiês, revela leituras divergentes, há biografias críticas que o retratam como “o homem mais perigoso do país”, há estudos que relativizam campanhas de imprensa contra sua figura, atribuídas a inimizades poderosas na mídia de então. Ao historiador cabe confrontar fontes, não reencenar linchamentos.

Um Congresso que olhava para obras de Estado

Em 1973, na Presidência do Senado, Filinto conduziu a Casa num momento em que grandes projetos de infraestrutura (energia, integração territorial) avançavam com forte participação do Legislativo na aprovação de tratados, empréstimos e acordos internacionais. É a culminância de uma carreira que, queiramos ou não, ajudou a traduzir demandas regionais em decisões federais, trabalho discreto, feito de ofícios, pareceres, reuniões. E foi em serviço, voltando de missão oficial, que veio o acidente fatal em Paris. A memória institucional do Senado marca esse desfecho e as funções que ele acumulou ao longo de quase três décadas.

Mato Grosso e Mato Grosso do Sul: um legado de ponte

Quando se pensa o legado de Filinto para Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, é preciso abandonar tanto o culto quanto a caricatura. O que retorna, ao recolher fontes e memórias, é a figura de um articulador que ajudou cidades, estimulou a formação de quadros locais e pressionou pela institucionalização do ensino superior no sul do Estado, etapa decisiva para o surgimento da UFMS. É natural que famílias sul-mato-grossenses o guardem com estima: ao lado de prefeitos, deputados, governadores e técnicos, ele compôs a cadeia de decisões que tirou a região do isolamento.

Também é verdade que a política que ele praticou tinha custos: pertencia a um sistema duro, com pouca transparência e concentração de poder. Escapar desse dado seria higienizar a história. Mas deixá-lo reduzido ao capítulo mais sombrio seria empobrecer a análise. Entre uma coisa e outra, há um homem público que, a seu modo, pensou o Brasil a partir de sua província, que entendeu a importância de universidades e energia, e que soube abrir portas para quem batia de longe.

Filinto Müller não cabe em uma etiqueta. Foi militar, chefe de polícia, senador, presidente de partido e presidente do Senado. Teve aliados e inimigos poderosos. Errou como parte de um sistema que julgamos hoje com olhos democráticos, e acertou ao apostar que educação, energia e infraestrutura fariam a diferença para sua terra. Num país de memórias curtas e bodes expiatórios fáceis, recontar sua trajetória com equilíbrio é um serviço à história regional e à justiça da memória: nem hino, nem libelo; biografia inteira.

*João Carlos Vicente Ferreira é escritor, membro da Academia Mato-Grossense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, da Academia Brasileira de Belas Artes, dentre outras instituições.

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