HISTÓRIA
O voo que partiu um Estado ao meio
Por João Carlos Vicente Ferreira
Uma história suspensa entre Campo Grande e Aquidauana, narrada pelo último olhar que a testemunhou.
Há acontecimentos que não cabem nos livros de história porque não foram feitos de decretos, e sim de silêncios. Não nasceram de discursos públicos, mas de frases murmuradas num corredor, num gabinete ou, como neste caso, dentro de um avião bimotor, subindo lentamente sobre os telhados de Campo Grande, no início luminoso de 1977. Há fatos que mudam o mapa do país como se mudam móveis de lugar, empurra-se aqui, desloca-se ali, e de repente o espaço nunca mais é o mesmo. A divisão de Mato Grosso é um desses fatos.
Parece história encerrada, tema antigo, assunto esgotado. Mas quem vive no coração do Brasil sabe que esse é um daqueles episódios que não se deitam no passado, pois eles continuam vivos, respirando debaixo da terra, surgindo em conversas de bar, reuniões políticas, salas de aula e lembranças familiares.
Quantas vezes, ainda hoje, alguém pergunta, às vezes em tom de provocação, às vezes de pura saudade:
“E se não tivesse dividido? Você imagina o tamanho que seríamos?”
Foi pensando nesse “e se” que, há algumas semanas, sentei-me diante de Edmundo da Silva Taques, engenheiro agrônomo, 89 anos, olhos vivos de quem sabe que carrega na memória um fragmento da história que só ele pode contar. E Edmundo abriu a porta do tempo, deixando que o vento de 1977 entrasse pela sala, carregando com ele o ronco das hélices de um avião, as tensões de uma conversa, o peso de uma decisão.
Porque ele não ouviu dizer. Ele estava lá.
E é a partir desse olhar, desse corpo presente, que esta narrativa se alonga.
Para entender a força daquele voo de 1977, é preciso regressar um pouco mais, e olhar o Mato Grosso anterior: era Mato Grosso indiviso, monumental, quase mítico em sua extensão. Um território que desafiava governantes, logísticas e imaginações. Cuiabá, a capital, era um centro político cercado de rios, serras, chapadões e distâncias intransponíveis. Era governar o vazio, o remoto, o possível e o impossível ao mesmo tempo.
O sul do estado, onde hoje se ergue Mato Grosso do Sul, crescia com vida própria. Campo Grande tornava-se uma cidade dinâmica, cheia de militares, engenheiros, produtores, comerciantes, e cada qual com um sonho distinto para a região. A economia corria mais rápido ali. As estradas e os trilhos chegavam primeiro ali. Os investimentos federais preferiam ali.
Mas, apesar disso, havia um sentimento de pertencimento. Campo Grande, como Corumbá, Ponta Porã, Dourados, era Mato Grosso por inteiro, e Mato Grosso era tudo isso junto.
No entanto, essa dobradiça histórica tinha seus rangidos:
- A distância entre Campo Grande e Cuiabá era longa demais para que as decisões corressem com naturalidade.
- A expansão agropecuária transformava radicalmente o sul.
- O norte ainda crescia a passos irregulares.
- O Governo Federal enxergava, no grande Mato Grosso, tanto potencial quanto riscos geopolíticos.
Era um estado unido no sentimento — mas tensionado pela geografia.
Foi nesse cenário que o jovem secretário de Agricultura, Edmundo Taques, pessoa certa no lugar certo, ajudava a conduzir a transformação agrícola de Mato Grosso, que redundou no exitoso agronegócio da contemporaneidade.
Edmundo tinha uma vantagem que poucos possuíam: era amigo pessoal do ministro da Agricultura, Alysson Paulinelli, desde os tempos de Lavras. E Paulinelli, por sua vez, era um dos grandes visionários da agricultura tropical no Brasil, talvez o maior de todos.
A década de 1970 marcava o início da epopeia que transformaria Cerrados, até então considerados improdutivos, em uma das regiões agrícolas mais importantes do mundo. Embrapa, Cerrado, pesquisa científica, adaptação de sementes, tudo fervilhava num país que aprendia a crescer para dentro.
E Mato Grosso, com sua vastidão, era o palco ideal.
As safras de arroz de sequeiro, colhidas nas regiões de Diamantino e Araguaia, surpreendiam até os mais otimistas. A produtividade superava expectativas e, pela primeira vez, Mato Grosso ultrapassava o Rio Grande do Sul, então referência absoluta em arroz.
Esse feito não era apenas estatístico. Era um sinal. Era o aviso de que algo enorme estava prestes a acontecer. Garcia via isso com clareza. Para ele, dividir o estado naquele momento seria como cortar uma árvore no instante em que ela começa a crescer.
A visita presidencial
E então aconteceu: o presidente Ernesto Geisel decidiu visitar Campo Grande. O Planalto avisou o governador Garcia Neto, que organizou tudo com precisão e respeito. Não era apenas uma visita, era uma oportunidade de conversar, de influenciar, de tentar, ainda que tardiamente, impedir o que muitos já cochichavam em Brasília.
Garcia chamou seu secretário Edmundo e juntos partiram de Cuiabá num bimotor simples, de oito lugares, desses que se equilibram mais nos cálculos do piloto do que na tecnologia embarcada.
A recepção em Campo Grande foi calorosa. Autoridades, militares, estudantes, políticos, todo o aparato protocolar. Assinaturas de convênios, apertos de mão, discursos que começam e terminam do mesmo jeito.
E então veio o inesperado, esse tipo de movimento do destino que não se explica.
Geisel queria visitar Aquidauana, rever o ex-governador José Fragelli, amigo de décadas. Seu próprio avião não pousaria lá. Mas o do governador, por consulta do presidente, sim.
E Garcia, sem hesitar, ofereceu a aeronave.
A cena parece simples, mas naquele instante começou a se tecer uma das conversas mais importantes da história sul-mato-grossense.
Assim subiram:
- o piloto
- o copiloto
- o ajudante-de-ordens
- o presidente
- o governador
- e o secretário Edmundo
Seis homens dentro de um avião estreito, rumando para uma cidade pacata do interior, mas carregando na cabine o peso de uma decisão que mudaria o país.
O avião decolou, rasgou os últimos telhados de Campo Grande, passou sobre bairros que ainda hoje guardam aquele mesmo desenho irregular de ruas, e começou a ganhar altitude.
Foi então, naquele instante suspenso entre o chão e o céu, que o governador Garcia se moveu no assento, respirou fundo, e chamou o presidente para perto.
O diálogo que se seguiu é um documento histórico que só Edmundo pode nos entregar.
A voz de Garcia não era agressiva. Era firme, carregada de esperança e de receio ao mesmo tempo.
— Presidente, o senhor precisa atender ao clamor do povo de Mato Grosso e não dividir o nosso Estado.
Geisel olhou. Esperou.
— O senhor sabia que ultrapassamos o Rio Grande do Sul na produção de arroz? Veja o Araguaia, veja Diamantino…
“Se continuarmos assim, seremos um dos estados mais importantes do país.”
E então veio a pergunta que não era só pergunta, era súplica, era alerta, era sonho:
— Então por que o senhor quer dividir o estado?
Edmundo, sentado atrás, segurou o ar. Ele sabia que estava diante de um instante que não se repetiria jamais.
A resposta veio como um golpe rápido:
— Por isso mesmo.
Três palavras que partiram o estado ao meio.
Geisel, percebendo a gravidade do silêncio que se instalou, completou:
— O governo federal possui estudos científicos. Mato Grosso está entre as regiões de maior potencial de crescimento do Brasil. Não posso ter um estado tão grande e tão forte ao ponto de, futuramente, querer se emancipar.
Não era uma acusação. Era a lógica política dos militares: prevenir possíveis separatismos, evitar concentrações de poder, manter o país coeso.
Geisel citou São Paulo, citou Rio Grande do Sul, lembrou movimentos históricos de tensão entre estados e União. E concluiu:
— A divisão é uma medida estratégica.
Não houve mais debate. Não houve negociação.
O destino já estava decidido.
O avião pousou suavemente em Aquidauana. A cidade nem imaginava que, horas antes, um diálogo secreto selara a divisão de um dos maiores estados do Brasil.
Geisel reencontrou José Fragelli, reviveram memórias de quando o futuro ainda parecia uma estrada aberta, conversaram como velhos amigos que a política separa e o respeito junta.
A tarde correu tranquila, quase banal. E, no entanto, era histórica.
Ao retornarem, nada mais foi dito sobre o tema.
Mas o silêncio confirmava o inevitável.
Poucos meses depois, a Lei Complementar nº 31 criou oficialmente o Estado de Mato Grosso do Sul.
A implantação se daria em 1º de janeiro de 1979.
Um novo estado surgia.
Outro permanecia.
E nada voltaria a ser como antes.
O que se perdeu, o que se ganhou
A divisão trouxe:
- orgulho para uns
- mágoa para outros
- e surpresa para quase todos
Os sulistas finalmente teriam uma capital próxima, dinâmica, voltada para seus interesses.
Os nortistas perderiam parte importante de sua extensão, mas manteriam sua identidade histórica e cultural.
E ambos seguiriam crescendo, talvez até mais do que se unidos estivessem.
Hoje, quando observamos os dois estados, vemos:
- dois colossos agrícolas
- duas economias pujantes
- duas identidades fortes
- dois orgulhos legítimos
- duas histórias que são uma só
E ainda assim, permanece no ar, como um eco daquele voo, a eterna pergunta:
E se não tivesse dividido?
Dos seis homens daquele voo, pelo menos a metade já partiu.
Geisel morreu. Garcia morreu. O ajudante-de-ordem tornou-se general e depois também se foi. Os pilotos, não se sabe deles; possivelmente, já não estão mais entre nós.
Resta Edmundo, guardião da memória, último farol daquele instante de 1977.
Quando ele narra, não o faz com vaidade. Narra como quem devolve ao povo uma história que o povo nunca soube. Narra com a humildade de quem carregou por décadas um segredo que não era seu, mas que foi depositado em seus ouvidos porque a vida o colocou no assento certo, no voo certo, na hora exata.
Hoje, quase cinquenta anos depois daquele diálogo, os dois Mato Grosso se olham com respeito, e até com carinho. Há rivalidades esportivas, disputas econômicas, comparações inevitáveis. Mas há também uma fraternidade silenciosa, herdada de séculos de história comum.
Geisel estava certo?
Garcia estava certo?
Essa é a pergunta que ninguém responderá por completo.
Porque a história não é tribunal, é rio.
E rios seguem cursos que nem sempre escolhem.
Assim também foi o Estado de Mato Grosso.
Assim também nasceu Mato Grosso do Sul.
Apenas uma certeza permanece: aquele voo de pouco menos de 90 quilômetros modificou para sempre o mapa do Brasil.
E quem contou essa história pela primeira vez, quem a guardou por tanto tempo, foi Edmundo da Silva Taques, o homem que, sem querer, se tornou guardião de um dos diálogos mais decisivos que o Cerrado já ouviu.
Um estado pode não caber inteiro na terra.
Mas um destino inteiro pode caber dentro de um avião.

*João Carlos Vicente Ferreira é escritor, membro da Academia Mato-Grossense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, da Academia Brasileira de Belas Artes, dentre outras instituições.
HISTÓRIA
Filinto Müller: O Senador que Pensava Mato Grosso por Inteiro
Por João Carlos Vicente Ferreira
Há figuras públicas que ficam presas a um retrato único. Em torno delas, a história congela um instante, quase sempre o mais controverso, e apaga todo o resto. Com Filinto Müller (1900–1973) aconteceu isso. O Chefe de Polícia do período varguista acabou eclipsando o senador de Mato Grosso que atravessou décadas, costurou apoios, abriu portas para conterrâneos e ajudou a viabilizar projetos estruturantes no então Estado Uno, especialmente na porção sul que, anos depois, se tornaria Mato Grosso do Sul. Reconhecer esse lado humano e propositivo não significa empalidecer as sombras do passado; significa, antes de tudo, ampliar o enquadramento para restituir complexidade a um personagem que marcou a política brasileira.
De Campo Grande e Cuiabá à Brasília, a construção de um articulador
Nascido em Cuiabá em 11 de julho de 1900, Filinto vem do ambiente militar para a política nacional. Após 1945, elege-se senador por Mato Grosso em 1947, retorna ao Senado em 1955, e, numa trajetória de alta voltagem política, atua como líder de governo e, após 1964, torna-se uma das principais vozes do partido governista, a ARENA, chegando a sua presidência. Em 1973, assumiu a Presidência do Senado e do Congresso Nacional, cargo no qual morreria em 11 de julho daquele ano, vítima do acidente do Voo Varig 820, em Paris. Esses marcos, hoje, constam nas biografias oficiais do Senado e em sínteses de referência.
Mais que cargos, porém, interessa aqui o estilo, Filinto tinha talento para articular,transitava entre gabinetes, operava com prazos e orçamentos, telefonava, pedia, cobrava, encaminhava, especialmente quando o assunto era Mato Grosso. É assim que ele se torna, para muitos conterrâneos, o “atalho” entre o interior e as mesas decisórias de Brasília, não como “padrinho” no sentido vulgar, mas como ponte política.
Educação como projeto nacional: a semente da UNB e da UFMS
Filinto sempre teve como um de seus propósitos de vida e de política a educação. Focou muito nisso, são muitos os fatos que evidenciam essa obsessão por esse tema. Em 1961, com o projeto da UnB – Universidade de Brasília, enfrentando resistência no Senado, Darcy foi aconselhado a procurar Filinto Müller (líder do governo). Embora adversários, Filinto o recebeu para um chá e garantiu: “Não se inquiete, professor. O problema agora é meu”; pouco depois conduziu o debate e a matéria foi aprovada, a UnB seria autorizada pela Lei nº 3.998, de 15 de dezembro de 1961. O sul do antigo Mato Grosso, notadamente Campo Grande, conheceu nos anos 1960/70 um salto institucional no ensino superior. Primeiro, com a expansão de institutos isoladosbaseados em municípios interioranos; depois, com a Lei estadual nº 2.947, de 16/09/1969, que criou a Universidade Estadual de Mato Grosso (UEMT). Mais adiante, já com o estado dividido, veio a federalização pela Lei nº 6.674, de julho de 1979, instituindo a Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). É esse encadeamento, institutos → UEMT (1969) → federalização (1979), que explica a universidade que conhecemos hoje.
Qual foi o papel de Filinto nesse processo? Não há um “decreto Filinto” criando a UFMS, a federalização é posterior à sua morte, mas é impossível separar a engenharia política que permitiu ampliar a rede de ensino superior no sul do Estado da articulação de bancada e do partido em Brasília, áreas nas quais Filinto tinha peso real, pois, erasenador influente e presidente da ARENA (1969–72; 1973), com trânsito pleno nos ministérios. Nos depoimentos de época e na memória regional, ele aparece como interlocutor para aprovar recursos, destravar processos e fortalecer a pauta educacional do governo estadual, então sob Pedro Pedrossian.
Essa visão de interiorização, laboratórios, bibliotecas, escolas de formação técnica,tinha um claro horizonte: rachar o isolamento do interior. A universidade, nesse sentido, não era apenas um conjunto de cursos; era território de futuro, um pacto de formação que permitiria ao jovem de Dourados, Corumbá, Ponta Porã, Coxim e Três Lagoas ficar e prosperar. É nesse fio de ação pública que Filinto é lembrado por muitos como parceiro e pressão em favor do sul do Estado.
1966: realpolitik, eleições e o “peso federal” no Estado Uno
Em 1966, o desenho eleitoral brasileiro vivia sob o AI-3 e o recém-instalado bipartidarismo; a ARENA arregimentava as bases do regime, e a política estadual se travava em torno de capitais regionais. Em Mato Grosso, o nome de Pedro Pedrossian consolida-se como expressão administrativa e palatável ao poder central. A literatura sobre as eleições estaduais de 1966, registra a força da ARENA no estado e cita o papel de Filinto Müller nesse contexto, liderança que pesava na montagem das chapas e na interlocução com Brasília, sem a qual nenhum projeto estadual respirava com folga.
A fé pública de que “Filinto referendou Pedrossian” nasce desse ambiente de coalizão,num Brasil onde recursos e autorizações corriam por canais estreitos, ter um senador com comando sobre o partido governista significava, na prática, abrir portas. O resultado concreto, para o sul do Estado, foi obra, serviço e formação.
Energia, serviços e municipalismo: o caso da Usina de Dourados
Se a universidade é símbolo do capital humano, a energia é a espinha dorsal da vida urbana. Dourados guarda um emblema que ajuda a enxergar a trama do período, a Usina Termoelétrica “Senador Filinto Müller”, iniciada na década de 1940, e inaugurada em 1949. Muito antes da chegada da energia interligada, aquela usina iluminou a cidade, marcou a paisagem e virou tema de pesquisas e reportagens sobre patrimônio cultural. O nome do senador na usina não é apenas homenagem; é sinal do vínculo político que associou sua figura a infraestrutura local e a agendas municipalistas.
É claro que filmes de época e fotografias mostram o quanto o Estado dependia de arranjos, prefeitura, governo estadual, apoio federal, para erguer e manter serviços. A memória douradense devolve a Filinto a imagem do senador que “falava pela cidade”, na capital federal. E, no Rio de Janeiro ou em Brasília, isso valia emendas, linhas de crédito, autorizações. A política miúda, tantas vezes invisível, é onde o propositivo se materializa.
Portas abertas para gente jovem: cartas, bolsas, passagens
Há um traço recorrente nas lembranças de famílias de Campo Grande, Dourados, Coxim, Três e Corumbá, dentre tantas outras, a de que os jovens que viajavam para o Rio de Janeiro ou São Paulo recebiam cartas de apresentação, recomendações, algum apoio logístico. Nem sempre isso aparece em atos oficiais, mas povoa a hemeroteca e os depoimentos orais. Esse é o Filinto das pessoas, o senador que escutava na portaria, que encaminhava. É o tipo de gesto miúdo que, somado, altera biografias. Para contar essa dimensão, o caminho é ouvir ex-estudantes e famílias, a memória ainda vive em cadernos, cartas, recortes. Muitas dessas pessoas ainda estão aí, vivas, quando não seus descendentes.
Ética, estilo e afetos: o Hotel Gaspar e a liturgia das visitas
Em Campo Grande, o Hotel Gaspar, hoje desativado, ficou colado à memória urbana, símbolo de uma era em que políticos, comerciantes, artistas passavam e deixavam rastro. Dissertações e inventários patrimoniais registram o papel desse hotel na identidade da cidade. Entre os relatos locais, é frequente a lembrança de que Filinto se hospedava ali quando em visitas. Não é o tipo de informação que se prova com um decreto, mas ela compõe a topografia afetiva do personagem, chegar, conversar, passar bilhetes, atender. Na política, a liturgia do encontro vale tanto quanto os discursos.
As sombras e os equilíbrios, o chefe de polícia e o Supremo
Ninguém discute que Filinto, como Chefe de Polícia do então Distrito Federal entre 1933 e 1942, integrou o aparato repressivo do Estado Novo. O que se discute, e muito, é a distribuição de responsabilidades em episódios como o de Olga Benário. Aqui a documentação jurídica importa: o Habeas Corpus nº 26.155 foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 1936; a Corte negou o pedido, decisão que permitiu a expulsão de Olga do Brasil. Isso não absolve o papel da polícia política no inquérito e na custódia, mas repõe o lugar jurídico de cada instância no processo: a decisão última não foi de um chefe de polícia; foi do STF.
Reconhecer esse desenho não é revisionismo; é método histórico. O próprio debate público, em livros e dossiês, revela leituras divergentes, há biografias críticas que o retratam como “o homem mais perigoso do país”, há estudos que relativizam campanhas de imprensa contra sua figura, atribuídas a inimizades poderosas na mídia de então. Ao historiador cabe confrontar fontes, não reencenar linchamentos.
Um Congresso que olhava para obras de Estado
Em 1973, na Presidência do Senado, Filinto conduziu a Casa num momento em que grandes projetos de infraestrutura (energia, integração territorial) avançavam com forte participação do Legislativo na aprovação de tratados, empréstimos e acordos internacionais. É a culminância de uma carreira que, queiramos ou não, ajudou a traduzir demandas regionais em decisões federais, trabalho discreto, feito de ofícios, pareceres, reuniões. E foi em serviço, voltando de missão oficial, que veio o acidente fatal em Paris. A memória institucional do Senado marca esse desfecho e as funções que ele acumulou ao longo de quase três décadas.
Mato Grosso e Mato Grosso do Sul: um legado de ponte
Quando se pensa o legado de Filinto para Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, é preciso abandonar tanto o culto quanto a caricatura. O que retorna, ao recolher fontes e memórias, é a figura de um articulador que ajudou cidades, estimulou a formação de quadros locais e pressionou pela institucionalização do ensino superior no sul do Estado, etapa decisiva para o surgimento da UFMS. É natural que famílias sul-mato-grossenses o guardem com estima: ao lado de prefeitos, deputados, governadores e técnicos, ele compôs a cadeia de decisões que tirou a região do isolamento.
Também é verdade que a política que ele praticou tinha custos: pertencia a um sistema duro, com pouca transparência e concentração de poder. Escapar desse dado seria higienizar a história. Mas deixá-lo reduzido ao capítulo mais sombrio seria empobrecer a análise. Entre uma coisa e outra, há um homem público que, a seu modo, pensou o Brasil a partir de sua província, que entendeu a importância de universidades e energia, e que soube abrir portas para quem batia de longe.
Filinto Müller não cabe em uma etiqueta. Foi militar, chefe de polícia, senador, presidente de partido e presidente do Senado. Teve aliados e inimigos poderosos. Errou como parte de um sistema que julgamos hoje com olhos democráticos, e acertou ao apostar que educação, energia e infraestrutura fariam a diferença para sua terra. Num país de memórias curtas e bodes expiatórios fáceis, recontar sua trajetória com equilíbrio é um serviço à história regional e à justiça da memória: nem hino, nem libelo; biografia inteira.

*João Carlos Vicente Ferreira é escritor, membro da Academia Mato-Grossense de Letras, do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso, da Academia Brasileira de Belas Artes, dentre outras instituições.
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